1. COMARCA DE PONTE NOVA

  2. 1ª VARA CÍVEL

 

 

  1. SENTENÇA

  2.  

  3.  

Autos nº 0521.15.003.308-7

Ação de obrigação de fazer procedimento cirúrgico

Requerente: Max Santos Meireles

Requerido: Estado de Minas Gerais

 

I – RELATÓRIO

Trata-se de ação de obrigação de fazer procedimento cirúrgico ajuizada por Max Santos Meireles contra o Estado de Minas Gerais, ambos devidamente qualificados na peça de ingresso.

O requerente em sua inicial alega que: 1) é portador de escoliose dextro-convexa 50º e possui necessidade de tratamento cirúrgico; 2) no procedimento cirúrgico, torna-se imprescindível a monitoração medular para a redução das complicações; 3) não há no Sistema Único de Saúde tecnologia disponível para a realização do procedimento cirúrgico, segundo o Dr. Roberto Garcia Gonçalves, médico ortopedista; 4) necessita realizar a cirurgia e que o requerido providencie um hospital de alta complexidade devido às impossibilidades técnicas do Sistema Único de Saúde; 5) não possui condições financeiras de arcar com os custos do procedimento, internação, medicação e demais despesas que se fizerem necessárias; 6) o art. 2º da Lei nº 8.080 prevê que a saúde é um direito fundamental, devendo o Estado promover as condições indispensáveis ao seu bom exercício; 7) o art. 198, inciso II, da Constituição determina que o atendimento à saúde integral, o que significa que todas as doenças e enfermidade serão objeto de atendimento, por todos os meios ao dispor da medicina moderna; 8) a legitimidade do requerido decorre do texto constitucional e da legislação infraconstitucional; 9) o relatório médico se mostra como prova inequívoca da necessidade da realização da cirurgia; 10) as provas constantes nos autos fundamentam a condenação do requerido na obrigação consistente na realização da cirurgia.

Deste modo, o requerente pleitou: 1) a citação do requerido; 2) a condenação do requerido para providenciar a realização do procedimento cirúrgico necessário ou custear unidade hospitalar com suporte para os procedimentos de que necessita; 3) a intimação do Ministério Público; 4) a concessão dos benefícios da justiça gratuita.

Com a inicial vieram os documentos de f.08/14.

O requerido devidamente citado ofereceu contestação às f.19/30. Nesta oportunidade argumentou: a) preliminarmente: a.1) a sua ilegitimidade passiva, vez que não pode ser responsabilizado por atos alheios a sua esfera de competência; b) no mérito que: b.1) o Brasil implementou por meio do SUS uma política de saúde dentro da reserva do possível; b.2) a realização de qualquer procedimento através do SUS deve obedecer à lista de espera previamente fixada pela Central de Regulação Assistencial, que estabelece a ordem em que os pacientes serão atendidos, levando em conta critérios de comparação da gravidade e urgência, com o escopo de garantir o acesso universal e igualitário das ações e serviços de saúde; b.3) o deferimento do pedido ocasionará a quebra do princípio da isonomia entre os usuários do SUS; b.4) não há prova da incapacidade financeira do autor, o que inviabiliza a condenação na obrigação pretendida; b.5) é incabível a fixação de multa em detrimento do Estado; b.6) por eventualidade, em caso de fixação de multa, esta deve ser arbitrada, consoante o princípio da razoabilidade.

Deste modo, o requerido rogou pela: 1) extinção do processo diante de sua ilegitimidade passiva; 2) a improcedência do pedido inicial.

O requerente apresentou impugnação à contestação às f. 34/41.

A parte requerente pugnou pelo julgamento antecipado do feito à f. 41, verso.

O requerido não especificou provas (f. 41, verso).

O Ministério público ofereceu parecer às f. 42/44, no qual opina pela rejeição da preliminar de ilegitimidade e pela procedência do pedido inicial.

Conversão em diligência à f. 45.

Manifestação do requerente à f. 45,verso.

O requerido se manifestou às f. 47/49.

É o breve relato dos autos.

Fundamento e decido, respectivamente.

 

II – FUNDAMENTAÇÃO

O processo encontra-se regular, sem nulidades.

Observadas as garantias constitucionais e processuais pertinentes à espécie.

Contudo, antes de adentrar ao mérito, analiso a preliminar suscitada.

 

II.A) DA PRELIMINAR: ILEGITIMIDADE PASSIVA

 

O requerido argumenta que não é parte legítima para figurar no polo passivo da ação, na medida em que não possui competência para realizar a obrigação pretendida.

Entretanto, razão não lhe assiste.

Inicialmente, vale ressaltar que a competência administrativa dos Municípios, dos Estados, do Distrito Federal e da União, em atender o direito do cidadão à saúde e à integridade física é comum, implicando solidariedade, uma vez que a competência de cada ente federado não está explicitada na Constituição Federal de 1988, tampouco na Lei nº 8.080/1990 - Lei Orgânica da Saúde.

Com efeito, as regras de distribuição das competências dos entes federados no âmbito do SUS não podem se sobrepor às normas constitucionais e infraconstitucionais que, repita-se, preveem a competência concorrente dos entes, quando o assunto é saúde.

Ademais, o STF firmou o entendimento de que todos os entes são legítimos para figurar no pólo passivo da lide que visa a concretização de direitos relacionados a saúde dos necessitados, tendo em vista a responsabilidade solidária desses. Vejamos:

 

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. TRATAMENTO MÉDICO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. REAFIRMAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente. (STF - RE 855178 RG, Relator(a): Min. LUIZ FUX, julgado em 05/03/2015, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-050 DIVULG 13-03-2015 PUBLIC 16-03-2015) (grifei)

 

Deste modo, resta patente a responsabilidade do Estado no caso em análise e a parte interessada pode dirigir o pleito contra qualquer um dos entes federados, vez que se trata de competência comum e há solidariedade entre os entes.

Portanto, rejeito a preliminar suscitada.

Passo ao exame de mérito.

 

II.B) DO MÉRITO

 

Trata-se de ação de obrigação de fazer procedimento cirúrgico ajuizada por Max Santos Meireles contra o Estado de Minas Gerais.

O requerente, em sua peça de ingresso, argumenta que é portador de escoliose dextro-convexa 50º e possui necessidade de tratamento cirúrgico.

Porém, durante o procedimento cirúrgico, torna-se imprescindível a monitoração medular para a redução das complicações, sendo que esta tecnologia não é atualmente fornecida pelo SUS.

Pois bem.

De início, registro que o direito à saúde é direito de todos e dever do Estado, que deve garantia o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação, nos moldes do art. 196 da CR/88.

Todavia, diante da atual situação econômica do país, com a escassez de recursos públicos, tal direito não é absoluto, impondo-se a demonstração da hipossuficiência econômica do paciente e a necessidade do tratamento.

No caso dos autos, vislumbro a hipossuficiência econômica da parte requerente, levando-se em consideração que está assistida pela Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais e os documentos juntados.

Por outro lado, entendo que a necessidade do procedimento está comprovado, conforme os documentos de f. 13 e 14.

Com relação à monitorização medular, durante o procedimento, entendo que se mostra necessária também. Sobre o tema, importante destacar que o Núcleo de Avaliação de Tecnologias em Saúde deixou consignado que a monitorização indicada pelo médico é de grande importância para evitar lesões neurológicas, tais como síndromes medulares e paraplegia, ao detectar alterações que precedem tais lesões precocemente, permitindo ao cirurgião adotar as medidas necessárias para evitá-las, durante o procedimento cirúrgico:

 

A monitorização é realizada durante o procedimento cirúrgico e detecta precocemente as alterações neurofisiológicas que precedem lesões neurológicas do trauma cirúrgico, quando estas ainda podem ser revertidas. O objetivo da monitorização intra-operatória é auxiliar o cirurgião a identificar alterações neurológicas, seja da medula ou dos nervos, durante a cirurgia, permitindo sua imediata correção. As técnicas de monitorização reduziram significativamente os riscos de complicação neurológica dos procedimentos de coluna. Antigamente, as lesões só eram identificadas no pós-operatório, quando o paciente acordava da cirurgia. Pacientes submetidos a cirurgias de deformidades, como escoliose, cifose, espondilolistese, cirurgias de tumores, estenoses de canal medular e correção de fraturas podem se beneficiar com a equipe de neuromonitorizacão presente em seus procedimentos.

[...]

A Neuromonitorização Intraoperatória Neurofisiológica (MIO) tem sido utilizada em cirurgias cranianas e de coluna nas quais os nervos motores ou sensoriais estão em risco, com o objetivo de reduzir os riscos de danos neurológicos durante o procedimento cirúrgico. Durante o procedimento, a integridade dos nervos, as conexões neurais e as funções cerebrais são monitoradas.

Ela permite a identificação precoce de danos causados por manipulações cirúrgicas ou por posições desfavoráveis dos pacientes. Assim, o cirurgião poderá reagir a tempo adequadamente.

A MIO não substitui a habilidade e o julgamento clínico do cirurgião, mas oferece dados funcionais que auxiliam a melhorar os resultados.

Sua utilização em cirurgias neurológicas e ortopédicas permite a correlação entre manipulação cirúrgica e alterações neurofisiológicas, identificando situações de risco iminente, permitindo ao cirurgião reprogramar a estratégia cirúrgica a tempo de evitar danos duradouros.

Em pacientes submetidos à cirurgia de coluna, a lesão de raízes nervosas é uma das mais temíveis complicações. Foi proposto que a monitorização neurológica intraoperatória pode reduzir os riscos de complicações neurológicas. Os objetivos da monitorização intraoperatória em cirurgias da coluna são identificar e definir a natureza de irritação neural ou lesão num momento em que o cirurgião pode diminuir ou evitar o dano.

A finalidade da neuromonitorização intraoperatória em pacientes submetidos à cirurgia de coluna é:

(1) identificar a irritação neural num momento em que o cirurgião pode agir para reduzir ou reverter a lesão;

(2) definir a natureza da lesão de uma forma que possibilite ao cirurgião terminar o procedimento evitando lesão posterior.

Hoving et al avaliaram a utilização da MIO em série de casos incluindo 66 pacientes submetidos a cirurgia de coluna para disrafismo espinhal e concluíram que o procedimento foi benéfico.

(http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/destaques/arquivo/2015/04/d65d17ed32c0be4148f78a68d0026f98.pdf) (grifei)

 

Em vista disso, tenho que a pretensão do requerente merece acolhimento, vez que ficou demonstrada a sua hipossuficiência financeira, bem como a necessidade do procedimento cirúrgico, com a monitorização medular.

Em que pesem os argumentos dispendidos pelo requerido, estes não se mostram suficientes para afastar a pretensão autoral.

De início, entendo que a invocação do princípio da reserva do possível não pode justificar o desatendimento à ordem constitucional de facilitação do acesso aos serviços de saúde.

Além do mais, deve-se ponderar sobre a aplicação do aludido princípio em face do direito fundamental à saúde. A meu ver, o direito à saúde, sempre que necessário, em cada caso concreto, deve prevalecer sobre o princípio da reserva do possível.

Ademais, não há justificativa para que a alegada reserva do possível exima o Poder Público da obrigação de adoção de todas as posturas necessárias ao implemento dos direitos fundamentais, posto que as normas constitucionais relativas à saúde são, além de dotadas de eficácia plena e imediata, também necessárias.

Convém lembrar, ainda, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 45 MC/DF, ressaltou que a reserva do possível não tem o condão de impedir a aplicação imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, razão pela qual deve o Poder Público garantir sempre e de forma plena o direito à vida, não sendo mais o ente estatal autorizado a uma postura abstencionista, mas efetivamente, cada vez mais obrigado a prestações positivas em favor do cidadão.

Sobre o tema, cumpre destacar parte do voto do Ministro Celso de Mello na referida ADPF:

 

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. (STF - ADPF 45 MC / DF - DISTRITO FEDERAL - Medida Cautelar em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - Rel. Min. Celso de Mello - j. 29/04/2004).

 

Assim, a alegada tese não pode servir de amparo para que o Poder Público se exima da sua obrigação constitucional.

No que se refere ao argumento de que a realização de qualquer procedimento através do SUS deve obedecer à lista de espera previamente fixada pela Central de Regulação Assistencial, que estabelece a ordem em que os pacientes serão atendidos, levando em conta critérios de comparação da gravidade e urgência, com o escopo de garantir o acesso universal e igualitário das ações e serviços de saúde, este não merece prosperar.

Isso porque, a decisão que estipula que o Poder Público forneça determinado tratamento a uma pessoa necessitada não pode ser interpretada como um tratamento privilegiado em relação a outras pessoas que sofram do mesmo mal, pois qualquer pessoa que passe pela mesma situação também pode recorrer ao Judiciário para ter acesso aos materiais que necessite e não possa pagar, como é o caso em apreço.

Destarte, a decisão judicial não fere o princípio da isonomia, posto que o Judiciário está apenas a ordenar o cumprimento dos dispositivos da Constituição da República, violados quando da negativa da Administração Pública.

Por isso, não há que se falar em benefício do requerente em detrimento dos demais cidadãos, muito menos em ofensa ao princípio da isonomia.

Isto posto, as teses defensivas não se mostram hábeis para desconstituir o direito do requerente.

Quanto ao argumento de impossibilidade de aplicação de multa pelo descumprimento da obrigação, este não possui fundamento. Ao contrário do que alega o requerido, a aplicação de multa pelo descumprimento da obrigação é possível, conforme o art. 536, § 1º, do Novo Código de Processo Civil, cujo objetivo é dar vigência ao princípio da efetividade da jurisdição, no sentido de se assegurar o cumprimento da obrigação, desde que seja fixada de modo razoável.

Assim, a procedência do pedido é a medida que se impõe.

 

III – DISPOSITIVO

 

Pelo exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido inicial para condenar o Estado de Minas Gerais na obrigação de fazer no sentido de providenciar a realização do procedimento cirúrgico necessário, ou custear unidade hospitalar com suporte técnico adequado para a realização do procedimento, com a monitorização medular, no prazo de até 15 (quinze) dias corridos, sob pena de multa diária no valor de R$500,00 (quinhentos reais), limitada a R$10.000,00 (dez mil reais).

A fixação da multa acima atende aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade e incidirá a partir do 16º (décimo sexto) dia, se verificado o descumprimento da ordem.

A contagem do prazo fluirá a partir da intimação do requerido desta decisão.

Condeno o requerido às custas processuais, contudo suspendo sua exigibilidade devido à isenção legal deste (art. 10, I, Lei Estadual 14.939/2003).

Decisão sujeita ao reexame necessário, nos termos do art. 496, inciso I, do Novo CPC.

Com o trânsito em julgado, ao arquivo, com baixa na distribuição.

P.R.I. Publicar no RUPE.

Ponte Nova, 31 de maio de 2016.

 

Damião Alexandre Tavares Oliveira

Juiz de Direito